Portugal: Greve geral

Sandra Monteiro -

A greve geral não se justifica apenas, portanto, para forçar a retirada pelo governo de propostas laborais que degradariam, e muito, a vida laboral dos trabalhadores. Justifica-se também pela urgência de defender instrumentos legais e sindicais que serão cruciais às lutas futuras

 

 Luís Montenegro ilumina-se quando tem à sua frente uma plateia de patrões. Relaxa e sorri, alarga os gestos, entusiasma-se com as cumplicidades que o ligam ao auditório. Voltou a mostrar-se assim ao intervir no Millennium Portugal Exportador, que decorreu no Europarque de Santa Maria da Feira no dia 2 de dezembro. Entre representantes da União Europeia, de conselhos de administração de instituições bancárias e de grandes grupos de telecomunicações e energia, o primeiro-ministro afirmou ser preciso «aproveitar agora» para fazer mudanças profundas, como as da legislação laboral: «não é quando estamos em situação de crise que vamos mexer nas bases da economia», cita o jornal online Eco(1).

 Montenegro, que já tinha criticado a convocatória da greve geral de 11 de dezembro pela Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP-IN) e pela União Geral dos Trabalhadores (UGT), classificando-a como «extemporânea e mesmo anacrónica»(2), lá acabou por mostrar como a mobilização dos trabalhadores não podia ser mais oportuna. Depois de voltar a defender uma «legislação laboral flexível para a economia ser mais competitiva, as empresas mais lucrativas e os trabalhadores poderem ter melhores salários», explicitou: «Da parte dos trabalhadores é preciso que haja uma contribuição, para que a sua relação mais flexível com a entidade empregadora seja um estímulo à melhoria da capacidade produtiva da empresa, aumentando a rentabilidade e fazendo crescer os salários na base da capacidade produtiva concreta»(3). Ou seja: impondo flexibilidade, os lucros e a remuneração acionista aumentam; os rendimentos dos trabalhadores ficam à discrição do empregador; e o modelo de desenvolvimento económico assente em baixos salários e trabalho descartável consolida-se.

 Por muito que Montenegro diga o contrário, o que está em causa com o «Anteprojeto Trabalho XXI de Lei da reforma da legislação laboral» são mesmo os direitos dos trabalhadores e das organizações que os representam e, consequentemente, a qualidade da democracia e o futuro da sociedade em que queremos viver. O governo dos patrões sabe bem, aliás, o que o leva a avançar com um enorme aumento da exploração dos trabalhadores, com mais precariedade e flexibilidade, com a facilitação dos despedimentos, com a transformação do direito à greve em algo irrelevante pela extensão dos serviços mínimos, com a dificultação dos combates jurídicos e sindicais mais difíceis (ver, nesta edição, os artigos de Maria da Paz Campos Lima e António Avelãs). Fá-lo porque a esquerda parlamentar é, neste momento, muito insuficiente para contrariar os retrocessos laborais, sociais e até civilizacionais desejados pelas direitas neoliberais. E fá-lo porque não ignora que a extrema-direita, por muito que tente cavalgar o descontentamento popular (a que nem neoliberais nem sociais-liberais deram resposta), está demasiado ligada, ideológica e financeiramente, aos interesses patronais para fazer verdadeira oposição ao governo, sobretudo em questões realmente fraturantes como a legislação laboral.

 O enfraquecimento dos direitos dos trabalhadores não afeta apenas a relação laboral e a vida pessoal. Afeta todo o funcionamento da sociedade, em particular quando ocorre, como é o caso, no quadro da degradação programada dos serviços públicos, algo já bem patente na saúde e na edução. E ainda vai no adro a procissão dos cortes nestes sectores para alimentar a viragem do «grande rearmamento europeu»…

 Já se sabe: tudo começa no trabalho, até a possibilidade de reduzir desigualdades socioeconómicas e criar sociedades que funcionem melhor. Num editorial neste jornal intitulado «Elogio dos sindicatos», escrito há mais de dez anos, em abril de 2015, Serge Halimi referia um estudo de economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI) que admitiam que «“cerca de metade” do aprofundamento das desigualdades que os liberais tradicionalmente preferem atribuir a factores impessoais (globalização, tecnologias, etc.) decorreria do declínio das organizações dos trabalhadores». E acrescentava: «Quando o sindicalismo, ponto de apoio histórico da maior parte dos avanços emancipadores, se apaga, tudo se degrada, tudo se fragmenta. A sua anemia só pode agudizar o apetite dos detentores do capital. E a sua ausência só pode libertar um espaço que é de imediato invadido pela extrema-direita e pelo fundamentalismo religioso, dedicando-se ambos a dividir grupos sociais cujo interesse seria mostrarem-se solidários». É também esta possibilidade de gerar solidariedades para impor direitos e igualdade que a atual proposta laboral do governo da Aliança Democrática pretende atacar. É esse o significado de impedir a entrada dos sindicatos, sem autorização patronal, nas empresas onde não haja trabalhadores sindicalizados, ou de limitar o direito à greve pelo alargamento abusivo dos serviços mínimos.

 A greve geral não se justifica apenas, portanto, para forçar a retirada pelo governo de propostas laborais que degradariam, e muito, a vida laboral dos trabalhadores. Justifica-se também pela urgência de defender instrumentos legais e sindicais que serão cruciais às lutas futuras. Construir uma frente de recusa popular mobilizada em torno da greve geral é criar ação coletiva onde ela pode ainda impedir as derivas austeritárias e autoritárias que se anunciam. Talvez o passo seguinte desta frente popular, sindical e social, passe também por contestar um outro lugar de exploração dos trabalhadores, a saber, a voragem da transformação em cada vez mais tempo de trabalho, por via do aumento da idade da reforma, dessa conquista humana fundamental que é o aumento da esperança de vida. Com os automatismos criados por governos anteriores, a idade da reforma subirá em 2027 para os 66 anos e 11 meses, ficámos a saber no final de novembro depois de publicados dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) relativos à esperança média de vida(4). Portugal, país de baixos salários, é agora o oitavo país da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) com a idade de reforma mais alta(5). Pior ainda: se pensarmos nos anos de vida saudáveis que os portugueses podem esperar ter depois dos 65 anos (8,4 anos), Portugal fica em décimo nono lugar entre os europeus (9,1 anos os homens, 7,8 anos as mulheres, que vivem mais tempo)(6). Isto torna ainda mais escandaloso o aumento da idade da reforma a que estamos a assistir em Portugal. Quase não há vida depois do trabalho, nem ao fim do dia nem no fim da vida.

Trabalhar cada vez mais tempo, por menor salário, com menos qualidade de vida pessoal e familiar? E com menos instrumentos de luta por igualdade e democracia? Este futuro que o governo de Luís Montenegro e as direitas querem impor é que seria, convenhamos, profundamente «extemporâneo e anacrónico».

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Notas:

(1) António Largueza, «Montenegro não abdica da lei laboral no “triângulo” do Governo para tirar Portugal “do ramerrame”», Eco, 2 de dezembro de 2025.

(2) Lusa, «Montenegro diz que greve geral “é incompreensível” e apenas serve interesses políticos de PCP e PS», Diário de Notícias, 9 de novembro de 2025.

(3) «Montenegro não abdica da lei laboral…», Ibid.

(4) Raquel Martins, «Idade da reforma sobe para 66 anos e 11 meses em 2027», Público, 27 de novembro de 2025.

(5) Lusa, «Portugal será o oitavo país com idade da reforma mais alta aos 68 anos», RTP, 27 de novembro de 2025.

(6) «Portugal é o 19º país com maior expectativa de vida saudável após os 65 anos, mas tem melhora significativa desde 2014», Expresso, 11 de agosto de 2025.

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[Artigo tirado da edición portuguesa de Le Monde Diplomatique, decembro de 2025]

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