A Inteligência Artificial vai salvar a economia?

Vicente Ferreira -

O que a experiência histórica nos ensina é que, por si só, as inovações tecnológicas não significam benefícios para todos. O desenvolvimento da IA surge numa economia cada vez mais desigual, dominada por grandes multinacionais que operam em setores fortemente concentrados e dominam os mercados. Neste contexto, a tecnologia está a ser usada como forma de pressão sobre os trabalhadores, para que aumentem o ritmo de trabalho, assumam mais tarefas e aceitem a compressão dos salários e a vigilância algorítmica

 É difícil discutir o futuro da economia sem que surja o tema da inteligência artificial. A tecnologia tem avançado a um ritmo impressionante e já se tornou um dos temas centrais do debate público. Multiplicam-se as notícias e artigos sobre o potencial de modelos como o ChatGPT, os impactos na forma como trabalhamos e os postos de trabalho que poderão ser substituídos. Ao mesmo tempo, o investimento canalizado para construir centros de dados está a atingir níveis historicamente elevados e o setor tem sido um dos principais motores do crescimento económico de países como os Estados Unidos.

 Esta dinâmica tem sido alimentada pelas promessas dos seus promotores. Sam Altman, CEO da OpenAI, disse que “as ferramentas superinteligentes podem acelerar de forma massiva as descobertas científicas e a inovação”, ao passo que Elon Musk, detentor da xAI, prometeu que a sua empresa iria, já este ano, desenvolver um modelo “mais inteligente que o humano mais inteligente”. Todos partem do pressuposto que a IA é a chave para aumentar a produtividade e impulsionar o crescimento das economias.

 No entanto, a generalidade das pessoas parece estar mais pessimista em relação ao futuro da economia do que noutros contextos comparáveis, como o da ascensão da Internet na viragem do século. Além disso, têm surgido receios de estarmos perante uma bolha especulativa à beira de rebentar. Para saber o que nos espera, é preciso perceber o que explica o crescimento impressionante da IA, de que forma está a mudar a economia e como se distribuem os ganhos (e os custos) da tecnologia.

Muito barulho por nada?

 Nos últimos anos, as cinco maiores empresas tecnológicas – Alphabet, Amazon, Apple, Meta e Microsoft – viram a sua cotação disparar no mercado financeiro. A Nvidia, que fabrica os chips necessários para os centros de dados, tornou-se recentemente a primeira empresa americana com valor de mercado superior a cinco biliões de dólares, enquanto a cotação da Microsoft e da Apple já supera os quatro biliões de dólares.

 O entusiasmo dos investidores parte de um pressuposto central: o de que a IA vai permitir aumentar a produtividade da maioria dos setores da economia, passando a ser altamente procurada pelas empresas. Mas, até agora, a realidade não tem correspondido às expectativas. Na verdade, é difícil vislumbrar melhorias na produtividade, que continua a crescer a um ritmo modesto e ainda está longe dos níveis registados na década antes da crise financeira de 2008.

Fonte: The Economist (aqui e aqui, respetivamente)

 Embora a IA esteja presente em muito do que fazemos hoje em dia, desde pesquisas em motores de busca como o Google aos chatbots com quem interagimos no apoio ao cliente, um relatório recente do MIT concluiu que 95% das empresas que incorporaram a IA não estão a obter qualquer retorno. O cenário começa a parecer-se com o que se verificou após o início da expansão dos computadores, na década de 1980, quando Robert Solow, um dos economistas mais influentes no estudo do crescimento económico, disse que “vemos os computadores em todo o lado menos nas estatísticas da produtividade”.

 A utilização limitada da IA até agora prende-se com o fosso entre as promessas dos criadores e as aplicações verdadeiramente úteis que tem. Em traços gerais, a IA generativa consiste em identificar padrões em bases de dados cada vez mais abrangentes e gerar textos, imagens ou extrapolações a partir desses dados. E isso envolve limitações significativas. Longe de possuírem capacidade de raciocínio próprio, os modelos atuais reproduzem os padrões dos dados com que são treinados. Produzem informações, imagens ou linhas de código com base em todas as informações, imagens e linhas de código que já foram publicadas (por pessoas reais). São o que alguns críticos apelidam de “papagaios estocásticos”.

 Mesmo nestas tarefas, ainda está por provar que o recurso à IA facilite o trabalho das pessoas. Os modelos de IA continuam a ser influenciados pelos enviesamentos dos próprios dados que utilizam, o que significa que contribuem para perpetuar ideias comuns, mas não necessariamente corretas, ou para tomar decisões discriminatórias através dos algoritmos. Além disso, os chatbots também podem contribuir para espalhar informações falsas e, de acordo com uma investigação recente, o ritmo a que produzem desinformação tem aumentado. Um estudo de vários meios de comunicação europeus concluiu que os modelos de IA cometem erros em quase metade das vezes quando lhes são perguntadas informações da atualidade, chegando a inventar informação.

 É por isso que, entre os economistas que se têm debruçado sobre o tema, não há consenso sobre o possível impacto da IA na economia. Dois dos estudos mais influentes chegam a conclusões diametralmente opostas: o primeiro, realizado por economistas da Goldman Sachs (Joseph Briggs e Devesh Kodnani), estima que a produtividade e o PIB dos EUA possam aumentar 15% com a adoção generalizada da tecnologia; o segundo, de Daron Acemoglu, vencedor do equivalente ao Nobel da Economia no ano passado, aponta para um crescimento de pouco mais de 1% do PIB nos próximos dez anos.

 A diferença está nos detalhes: Briggs e Kodnani assumem que a IA pode substituir 25% das atuais tarefas e reduzir custos de forma substancial, ao passo que Acemoglu projeta potencial para automatizar apenas 4,6% das tarefas. Como há demasiada incerteza envolvida, é difícil saber que hipóteses são mais realistas e prever o papel que a IA pode desempenhar no futuro. Apesar disso, há riscos reais no presente que não têm merecido atenção suficiente por cá.

Até quando dura o hype?

 Não seria de esperar que a adoção de uma nova tecnologia disruptiva fosse imediata. Todas as inovações radicais levam tempo até serem incorporadas na economia. A tecnologia pode estar disponível, mas enquanto as empresas não descobrirem o que fazer com ela nem adaptarem a produção, os ganhos são limitados. Além disso, se já é difícil fazer previsões sobre a economia em tempos normais – os economistas que o digam –, é ainda mais difícil prever de que forma novas tecnologias podem transformá-la. A grande questão é saber até quando durará o entusiasmo dos mercados se os resultados tardarem em aparecer.

 Entre 2024 e 2025, as gigantes tecnológicas investiram mais de 750 mil milhões de dólares em centros de dados e têm planos para gastar mais 3 biliões até ao final da década – mais ou menos o equivalente ao PIB de França. Só no segundo trimestre deste ano, as big five investiram mais de 100 mil milhões de dólares, dando um grande contributo para o crescimento do PIB dos Estados Unidos. Só que não se vislumbram receitas que permitam compensar este investimento: uma análise da S&P Global prevê que a receita total do mercado de IA pode chegar aos 85 mil milhões de dólares… em 2029. Mesmo nesse cenário, continuaria muito longe de compensar.

Fonte: Christopher Mims

 O problema acentua-se pelo facto do crescimento da IA estar assente numa lógica de financiamento circular em torno de empresas-chave como a Nvidia, que fabrica chips, a Oracle, que fornece a capacidade de computação, e a OpenAI, que desenvolve modelos de IA (como o ChatGPT). Recentemente, a Nvidia anunciou um investimento de 100 mil milhões de dólares na OpenAI, que, por sua vez, compra os chips da Nvidia para fornecer os seus centros de dados; no dia seguinte, a OpenAI assinou um acordo com a Oracle (de 300 mil milhões de dólares) para a construção de centros de dados, sendo que a Oracle adquire chips… à Nvidia.

 Este exemplo pode parecer significativo, mas é apenas a ponta do icebergue: os investimentos cruzados entre a Nvidia, a OpenAI e a CoreWeave (que também fornece capacidade de computação) atingem 1 bilião de dólares, com as empresas a atuarem simultaneamente como investidoras e clientes umas das outras. Como explica a economista Grace Blakeley, “todas reportam aumentos da receita, da cotação na bolsa e dos preços das respetivas ações, mas o dinheiro está essencialmente a mover-se em círculos”.

Fonte: Bloomberg

 As comparações com a bolha do dot-com são inevitáveis. Na década de 1990, as empresas emergentes da Internet também atraíram enorme interesse dos investidores e as cotações bolsistas dispararam antes da bolha rebentar em 2000. O investimento moveu-se sobretudo pelas expectativas sobre o futuro, tal como agora, mas não havia ganhos visíveis que o justificassem. Quando os Estados Unidos aumentaram as taxas de juro e os investidores se viraram para opções mais estáveis, a bolha rebentou e muitas empresas faliram.

 Se é verdade que a Meta, a Microsoft ou a Amazon parecem estar menos endividadas do que as empresas tecnológicas que alimentaram a bolha dos anos 90, também há outras que estão a acumular enormes dívidas para financiar esta aposta. Há fontes contraditórias sobre o papel dos fundos de investimento e de outras instituições da finança-sombra no financiamento da corrida à IA. A opacidade destes fundos, que estão à margem da regulação bancária, faz com que seja difícil avaliar a exposição dos bancos e perceber se o fim da bolha implicará uma crise relativamente circunscrita (como a do dot-com) ou uma crise sistémica como a de 2008.

E se corre “bem”?

 Apesar dos sinais de uma bolha especulativa, há quem argumente que nem tudo é necessariamente um problema. Há vários exemplos ao longo da história de bolhas especulativas que, apesar de terem rebentado, provocando perdas para os investidores e, por vezes, empurrando as economias para crises, deixaram inovações e infraestruturas que se revelaram fundamentais no longo prazo. Na década de 1840, o desenvolvimento da ferrovia também esteve associado a uma bolha que veio a rebentar, mas a rede de caminhos de ferro construída revelou-se um benefício inequívoco. A própria bolha do dot-com deixou como legado os cabos de fibra ótica que hoje suportam vários serviços digitais.

 A investigação de economistas como Carlota Perez ou Chris Freeman sugere que, em todas as grandes revoluções tecnológicas do passado, as primeiras décadas são marcadas por turbulência. Perez vê a IA como um novo passo na era das tecnologias de informação e comunicação e compara o atual período de transição a outras ondas do passado – como a da máquina a vapor ou a da eletricidade –, também marcadas por tensões sociais, destruição de empregos e criação de novas atividades.

 No entanto, mesmo que a IA consiga impulsionar a produtividade nos próximos anos, é preciso perceber quem ganha com isso. O que a experiência histórica nos ensina é que, por si só, as inovações tecnológicas não significam benefícios para todos. O desenvolvimento da IA surge numa economia cada vez mais desigual, dominada por grandes multinacionais que operam em setores fortemente concentrados e dominam os mercados, enquanto o declínio dos sindicatos e o aumento da precariedade deixaram os trabalhadores numa posição fragilizada. Neste contexto, a tecnologia está a ser usada como forma de pressão sobre os trabalhadores, para que aumentem o ritmo de trabalho, assumam mais tarefas e aceitem a compressão dos salários e a vigilância algorítmica.
 Outro fator crítico é o consumo de recursos naturais. Os centros de dados de IA exigem enormes quantidades de energia e água para processamento e arrefecimento. Atualmente, os centros de dados já consomem mais energia do que países inteiros como a Alemanha ou a França e estão a provocar pressão sobre a oferta existente, contribuindo para um aumento significativo dos preços da eletricidade nos EUA. Com a escala dos investimentos realizados e projetados até 2030, estima-se que a procura de energia possa aumentar em 165%. Tendo em conta o atraso na transição energética, esta expansão está a ser alimentada em larga medida por combustíveis fósseis, o que explica porque é que empresas como a Google, a Microsoft ou a Amazon estão a aumentar as emissões de carbono devido aos projetos de IA, contrariando o compromisso com a neutralidade carbónica, bem como a planear investimentos em centrais nucleares.

 Os centros de dados têm gerado preocupação entre as populações, não apenas devido à enorme quantidade de energia que requerem, mas também às necessidades de consumo de água. Cada centro de dados chega a consumir quantidades de água equivalentes ao consumo de cidades com 50 mil habitantes, o que coloca uma enorme pressão sobre este recurso. Nos EUA, já se registaram problemas de escassez de água e subidas dos preços em alguns estados. No México, o estado de Querétaro tornou-se um polo estratégico para centros de dados e as empresas têm extraído água subterrânea para arrefecer os servidores, enquanto bairros inteiros enfrentam cortes frequentes no abastecimento doméstico. Para lá das promessas sobre a desmaterialização da economia, os recursos naturais continuam a ser um foco de disputas.

Mudar o chip

 Em Portugal, a chegada de centros de dados de grandes empresas de tecnologia tem sido vista como uma oportunidade de modernização económica. O acesso a energia limpa e barata, a localização geográfica e a segurança são fatores que tornam o país atrativo para este tipo de investimentos. Apesar disso, o papel dos centros de dados na economia continua a ser pouco discutido e o tema só ganhou atenção mediática quando o maior investimento planeado – o da construção do centro de dados de Sines, da Start Campus – se viu envolvido numa investigação do Ministério Público que levou à queda do governo anterior.

 Tanto o governo anterior como o atual acolheram de forma entusiástica este investimento devido à criação de postos de trabalho e ao potencial da economia digital. No entanto, há alguns motivos para pôr em causa os benefícios anunciados, como alertou o Ricardo Paes Mamede. Os benefícios do centro de dados de Sines para a economia portuguesa não são assim tão óbvios, uma vez que os lucros serão repatriados e que os centros dependem essencialmente de equipamento eletrónico que deverá ser importado do estrangeiro. Em relação ao impacto ambiental, o centro de Sines promete usar água do mar, com dessalinização, mas desconhecem-se os contornos de outros projetos anunciados (como o do Fundão ou o de Abrantes). De resto, as grandes empresas já estão a inundar a rede elétrica com pedidos para ligação que, de acordo com um administrador da EDP, representam uma mudança “transformacional face à procura que temos tido historicamente”, colocando uma pressão significativa sobre a energia nacional.

 O caso português parece ter semelhanças com o de Aragão, no nordeste de Espanha. A corrida à instalação de centros de dados transformou a região de Aragão num dos epicentros europeus da IA, com a Microsoft e a Amazon a investir milhares de milhões de euros para adquirir terrenos e construir centros. Embora as autoridades celebrem os investimentos e a possibilidade de colocar o país na liderança da transição digital europeia, a comunidade local tem-se mostrado preocupada com a pressão sobre os recursos, numa região onde os verões cada vez mais secos e a escassez de água têm afetado a agricultura. Além da água, os centros poderão vir a necessitar de mais energia do que toda a que é atualmente consumida na região, o que pode revelar-se contraditório com as metas de transição energética.

 Em países como a Irlanda ou os Países Baixos, projetos de novos centros de dados foram suspensos ou adiados recentemente, uma vez que, embora possam criar emprego e atrair capital, colocam pressão sobre os recursos e levantam preocupações sobre o impacto ambiental. Os casos de Portugal e Espanha mostram como esta tensão é particularmente visível nas economias semi-periféricas, onde a chegada de multinacionais é muitas vezes apresentada como sinónimo de progresso inevitável. Na ausência de planeamento, o investimento estrangeiro é encarado como um fim em si mesmo. Enquanto os interesses privados das multinacionais que pretendem aceder a terrenos, energia barata e água são claros, o interesse público permanece difuso e pouco debatido.

 Os investimentos astronómicos no desenvolvimento da IA são possíveis porque, nos últimos anos, as multinacionais tecnológicas têm acumulado enormes lucros, monopolizado o acesso aos nossos dados pessoais e pago taxas efetivas de imposto bastante inferiores às da maioria das empresas, o que lhes permitiu consolidar o poder que detêm e a capacidade de influenciar comportamentos individuais e coletivos. A verdade é que temos muito pouco controlo sobre os investimentos e, por isso, pouco voto na matéria sobre os objetivos prosseguidos, que tanto podem ser socialmente úteis – substituir tarefas penosas, reduzir o tempo de trabalho ou descobrir novos medicamentos – como ser pouco interessantes ou até nocivos para a sociedade. Sem socializar os ganhos da tecnologia, é tudo menos garantido que se traduzam em melhorias da qualidade de vida. O entusiasmo dos mercados tem enviesado o debate público e ofuscado as principais questões em aberto. É preciso mudar o chip.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Ladrões de bicicletas, do 4 de novembro de 2025]

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